19 de março de 2021

O que significa café “torrado à mão”?

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À medida que a cultura do café da terceira onda continua a pegar velocidade e popularidade em todo o mundo, cada vez mais torrefadores, baristas e consumidores se interessam nas experiências e na jornada por trás de sua xícara.

Como parte disto, os torrefadores de café especial estão buscando comunicar mais sobre sua arte e dar atenção aos detalhes da marca. Isso inclui o uso de frases como “pequeno lote”, “artesão” e “torrado à mão”.

Em um esforço de desmistificar estes termos, perguntamos a vários especialistas em torra: o que significa dizer que o café foi “torrado à mão”?

Existe um processo ou foco diferente em algum momento durante a torrefação? Ou é apenas parte de uma estratégia mais ampla de marketing que se refere a um cuidado e a um maior controle por parte do torrefador? Continue a ler para saber o que responderam.

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O que realmente significa?

Quando pedimos a cada um destes experts  para explicar o que significa “torrado à mão”, algo ficou claro: há falta de consenso quanto à real definição.  

Tony Querio foi o torrefador americano campeão em 2016. Ele diz: “Não existe um consenso real sobre o que o termo significa. Torra à mão para mim implicaria simplesmente manipulação manual versus manipulação digital … um nível de controle manual.”

Roba Bulga Gilo é um estudioso de café sediado na Etiópia. “É muito complicado dar um rótulo ou uma definição”, diz ele. “Para mim, o significado está na ligação que se tem com o café, trata-se de contar uma história. 

“Quanto tempo se gasta para preparar o sabor ou perfil mais perfeito para um determinado café? Durante todas as fases do processo, suas mãos estão envolvidas … desde o manuseio dos grãos verdes até o aquecimento da máquina e checagem de tudo. 

“Quando dizemos que utilizamos uma determinada técnica para controlar uma determinada variável, em vez de simplesmente jogar o café na torradeira para o transformar o café verde em café utilizável, sem pensar sobre o sabor … para mim  esse é o café torrado à mão.”

Finalmente, Joe Marrocco é um executivo gerencial da List & Beisler. Ele diz: “É um pouco difícil definir … [historicamente] dentro do ofício [de torrefação] é claro que [alguns] dos [processos] são feitos à mão.

“No entanto, hoje, quase não há processos realizados à mão na torrefação de café, com exceção da amostragem. Apesar do ajuste do gás e do fluxo de ar serem práticas manuais, isso não  necessariamente define a torrefação como manual.” 

No final, as respostas apontam para uma conclusão: É um termo difícil de qualificar. Todos parecem ter a sua opnião, mas não é necessariamente uma ideia clara ou simples. 

Em última análise, parece haver uma filosofia compartilhada enraizada, até certo ponto, de ser uma atividade prática e focada, ao invés de realmente usar  as mãos. Quanto aos três entrevistados, todos voltam ao mesmo ponto: a ideia de algum tipo de controle manual no processo de torrefação.

Apenas um outro clichê?

Então, se não há uma definição concreta: será apenas mais um dos muitos clichês usados no dia-a-dia, por profissionais de café especial? É apenas marketing?

Tony desenha paralelos entre a “torra manual” e o conceito de “café artesanal”, uma frase frequentemente associada a torrefações e cafés menores e independentes. “Certamente, no setor de café especial dos EUA, não vejo nenhum dos termos fazerem muito mais sentido”, diz Tony. “É o que as pequenas empresas fazem para mostrar que são especiais.”

Ele levanta outro ponto importante: a torra manual implica haver um grau de envolvimento humano na prática, mais do que o habitual. Neste caso, embora o toque pessoal possa ser apelativo para alguns, qualquer nível adicional de controle manual significa que a consistência pode ser um problema.

“A consistência do café marca a habilidade da torrefação”. Você deve poder ir a uma loja, comprar um saco de café, depois voltar na semana seguinte e ter uma experiência semelhante com esse café. 

“Sempre que vejo os termos ‘torrado à mão’ ou ‘lote pequeno’, [me pergunto se] isto aumenta a quantidade de variáveis e, ainda,  se diminui a consistência.”

Joe acrescenta: “Acho que muitas pessoas no mercado de especialidades acreditam que um trabalho desnecessário acrescenta algo ao artesanato. Mas isso não é necessariamente o caso. Só porque algo requer mais estágios e trabalho literalmente manual para controlar o processo não significa que seja ‘mais artesanal’ ou de melhor qualidade.

Automação e técnicas tradicionais de torra

O primeiro cilindro de torra pode ser rastreado até o Egito do século XVII, onde uma manivela manual foi usada para girar os grãos para permitir que fossem expostos uniformemente ao calor. Nos anos seguintes, este design se espalhou rapidamente pela Inglaterra, França, Itália e Países Baixos, antes de seguir para colônias europeias.

Antes disso, no entanto, o café era torrado em uma fina panela de metal ou cerâmica. Esta prática pode ser traçada até o século XV, e acredita-se que tenha se originado no Império Otomano e na Grande Pérsia. O grão era mexido na panela, mas naturalmente, esse processo era consideravelmente menos preciso em relação à aplicação do calor.

Hoje, cada torrefação que vende café em escala usa algum tipo de torrador mecânico, variando geralmente entre 1 kg a mais de 100 kg de capacidade.

No entanto, a questão permanece: em que ponto ao longo da história da torrefação as pessoas pararam de torrar café à mão? 

Alguns acreditam que o café deixou de ser verdadeiramente “torrado à mão” com a introdução de softwares dedicados para torrefação ou eletricidade. Para outros, pode ser o minuto em que o café deixou de ser torrado em panelas.

Hoje, Roba diz que as técnicas tradicionais de torrefação de café ainda existem, talvez mais perceptivelmente nos países produtores. Na Etiópia, ele diz que o café  às vezes ainda é torrado sobre o fogo, como uma atividade quase “cerimonial”.

“Começa com um fogo de baixa combustão, que é basicamente apenas carvão”, diz. “Tudo gira em torno do lento processo de torrefação de café na panela. [Sentir] os aromas que vêm do café enquanto ele torra, e ver o processo lento da mudança de cor.

“Depois que o café é torrado, alguém o tritura com um almofariz e um pilão. Uma vez que está moído, é colocado em um pote com água quente [sobre o fogo]. O resultado final é uma xícara bem pequena, como um café expresso. [Mas] o tempo que leva dá às pessoas tempo para falar sobre a vida, sobre o futuro.”

Joe, no entanto, acredita que a automação e a escala não necessariamente importam, desde que haja algum grau de controle humano. “Na minha opinião, se você tem algum controle manual sobre os elementos que criam o sabor, isso é uma torrefação manual”, diz ele.

“Muitos pessoas dentro da indústria de café especial acreditam que o café [torrado à mão ou] artesanal se refere ao tamanho do lote, mas eu não acredito que seja isso … é uma questão de controle de sabor. Essa busca não se limita ao tamanho do torrador.

“Trata-se de conseguir uma torra que tenha um impacto direto no sabor do café, atingindo o ponto desejado.” 

Assim, não existe uma definição real para a expressão café torrado à mão. Regras mais rigorosas diriam que o café deveria ser torrado sobre o fogo; outros diriam que não pode haver nenhum software ou tecnologia avançada envolvida. 

Fundamentalmente, porém, parece que todos os três entrevistados concordam em uma coisa: a expressão “torrado à mão” está ligada ao controle humano manual. Esse controle pode ser feito através de uma determinada máquina ou plataforma, mas é este controle que demonstra que um lote ou saco de café foi “torrado à mão”.

Assim, o que o consumidor pode esperar? Bem, embora a frase seja confusa em termos de marketing, está se tornando um sinônimo em torrefações de café independentes e artesanais, que muitas vezes tem um foco natural na qualidade e na rastreabilidade.

No entanto, como sabemos, todos estes conceitos já são uma parte fundamental da cultura do café da terceira onda. Se é ou não necessário ou útil descrever o café como “torrado à mão” é outra questão.

Traduzido por Daniela Melfi

Crédito das imagens: Battlecreek Coffee RoastersMatt HoffmanArdi EvansCharlie FirthJonathan Farber

PDG Brasil

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